quinta-feira, 5 de setembro de 2013

MADRIGAL LÚGUBRE


MADRIGAL LÚGUBRE
Em vossa casa feita de cadáveres,
ó princesa! Ó donzela!
em vossa casa, de onde o sangue escorre,
quisera eu morar.
Cá fora é o vento e são as ruas varridas de pânico,
é o jornal sujo embrulhando fatos, homens e comida guardada.
Dentro, vossas mãos níveas e mecânicas tecem algo parecido com um véu.
O mundo, sob a neblina que criais, torna-se de tal modo espantoso
que o vosso sono de mil anos se interrompe para admirá-lo.
Princesa: acordada sois mais bela, princesa.*
E já não tendes o ar contrariado dos mortos à traição.
Arrastar-me-ei pelo morro e chegarei até vós.
Tão completo desprezo se transmudará em tanto amor ...
Dai-me vossa cama, princesa,
vosso calor, vosso corpo e suas repartições,
oh dai-me! que é tempo de guerra,
tempo de extrema precisão.
Não vos direi dos meninos mortos
(nem todos mortos, é verdade,
alguns, apenas mutilados).
Tampouco vos contarei a história
algo monótona talvez
dos mil e oitocentos atropelados no casamento do rei da Ásia.
Algo monótono ... Ásia monótona ...
Se bocejardes, minha cabeça
cairá por terra, sem remissão.
Sutil flui o sangue nas escadarias.
Ah, esses cadáveres não deixam
conciliar o sono, princesa?
Mas o corpo dorme; dorme assim mesmo.
Imensa berceuse sobe dos mares,
desce dos astros lento acalanto,
leves narcóticos brotam da sombra,
doces ungüentos, calmos incensos.
Princesa, os mortos! gritam os mortos!
querem sair! querem romper!
Tocai tambores, tocai trombetas,
imponde silêncio, enquanto fugimos!
... Enquanto fugimos para outros mundos,
que esse está velho, velha princesa,
palácio em ruínas, ervas crescendo, 15
lagarta mole que escreves a história,
escreve sem pressa mais esta história:
o chão está verde de lagartas mortas ...
Adeus, princesa, até outra vida.
Carlos Drummond de Andrade

O poema escrito por Carlos Drummond de Andrade, contido na obra “Sentimentos de Mundo”, trata-se de uma desigualdade social em um determinado período, contado com muita ironia. O título do poema já nos da idéia de contraste entre as sociedades, com as palavras madrigal sendo algo terno e delicado, e lúgubre algo que carregasse o peso de um sentimento fúnebre.
O eu lírico descreve um cenário que dá a entender que tudo se passa em um lugar de guerra, onde há muitos mortos, sangue e uma cena de massacre. Ele usa isso para fazer uma comparação com a realidade naquele momento. Onde pode-se interpreta que ele usa os mostos, citados no poema, para representar o povo, que não podiam se posicionar  ou tomar alguma decisão por falta de poder. Já a burguesia(governo) é representada pela figura da princesa, que usufrui de todo o seu poder sem ver a situação do povo. O descaso vinha também da mídia, imprensa, que escondia os fatos ocorridos, assim publicando apenas o que lhes convinha. O mundo em que a princesa vivia fazia com ela não enxergasse a situação, e o eu lírico pede para ela acordar, ver a situação do povo, e coloca o morro que os separa como um obstáculo para isso. Ele diz que se ela acordasse todo o desprezo se tornaria em amor, então ele pede para que ela divida tudo o que tem com ele, pois a necessidade é grande.
O eu lírico contava toda aquela horrível realidade, como se fosse uma história, que para a princesa parecia monótona , e ele tinha medo do que poderia acontecer caso ela começasse a enxergar todos os problemas. Mas ela dorme, e é questionada pelo eu lírico como consegue diante tanto horror e se a consciência não lhe pesa. Dorme como uma criança embalada nos braços ou como quem tenha tomado calmante, e em quanto desfruta do seu profundo desprezo os mortos pedem socorro, querem soluções, querem uma saída. Então, fogem, pois naquele lugar, os problemas já eram velhos, e ainda não haviam sido solucionados, e saem a procura de um novo lugar.
No final do poema, o eu lírico se compara com uma lagarta mole, cansada de tudo, de tentar fazer a princesa enxergar, e escreve esta história sem pressa, pois não tem mais esperanças que algo poderia se resolver, e mostra que não há só ele com tamanha indignação, que há outras varias lagartas pelo chão. Então, abandona tudo e despede-se da princesa, até uma próxima vida.

(Alunos: Viviane e Vitória).       

Um comentário:

  1. adorei esse post, me ajudou muito a entender a interpretação da palavra cadáveres...e também
    sobre as lagartas..

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